Quando o homem primitivo usou pela primeira vez pedras de sílex para qualquer propósito, antes ele tê-las-á fracturado acidentalmente e utilizado os fragmentos cortantes.
Charles Darwin, na Origem do Homem, 1871[1]
1 - Introdução
As indústrias líticas, maioritariamente produzidas explorando seixos fluviais de quartzito, representam grande parte dos achados arqueológicos no Alto Ribatejo[2], os ecofactos registam-se quase exclusivamente nos depósitos em gruta. Com efeito, a natureza dos depósitos fluviais desta região não permite a conservação de materiais orgânicos, tornando bastante difícil a obtenção de datações absolutas e/ou relativas, que não estejam relacionadas com a geomorfologia ou com a caracterização das indústrias líticas. No entanto, os sítios de ar livre desta região, desde o Paleolítico Inferior ao Neolítico, evidenciam ao nível da economia das matérias-primas o uso intenso e continuado do quartzito, cujos padrões de distribuição espacial e características tecno-morfológicas se têm relevado de problemática interpretação crono-cultural.
Assim, a construção de um quadro crono-estratigráfico para esta região, tem por base a elaboração de cartografia geomorfológica de pormenor e a triagem das indústrias de cronologia holocénica face àquelas pleistocénicas (ROSINA:2004). Esta triagem tem sido feita através do estudo geo-arqueológico de colecções de superfície, estudo tecno – tipológico de indústrias provenientes de contextos escavados, elaboração de cartografia temática com Sistemas de Informação Geográfica e datações absolutas por OSL e Termoluminiscência (PRUDÊNCIO et al: no prelo).
No que diz respeito à caracterização crono – cultural das indústrias líticas dos sítios de ar livre desta região, as investigações já efectuadas, nomeadamente no âmbito dos Projectos TEMPOAR I e II[3], indicam que dificilmente podemos classificar os sítios recorrendo só a critérios tecno-tipológicos. Com efeito, vemos que, quer em conjuntos paleolíticos, quer em conjuntos pós-paleolíticos, é comum a constante presença de dois sistemas de produção de artefactos idênticos, ambos aplicados no talhe de seixos fluviais de quartzito. Um tem como objectivo a produção de suportes (lascas com e sem retoque) enquanto que o outro consiste no talhe dos seixos com vista à sua utilização como utensílios (chopper e chopping-tools). Mesmo quando no âmbito dos referidos esquemas são aplicadas diferentes sequências de redução, os artefactos podem apresentar grandes semelhanças morfológicas no tempo e no espaço (GRIMALDI et al:1999). Em suma, uma das impressões que podemos deter numa visão geral das indústrias líticas do médio Tejo português é a sua aparente, quase monótona, homogeneidade. Esta decorre de similitudes entre os artefactos associados a vestígios de ocupações humanas atribuídas a contextos cronológicos muito distintos, desde o Pleistoceno ao Holoceno. Sugerindo assim que comunidades de caçadores-recolectores e agricultores teriam, nesta região, uma relação com o ambiente semelhante, sendo esta sugerida pela continuidade e recorrência de estratégias tecnológicas e de economia de matérias-primas. Estas hipóteses, porém, exigem um estudo aprofundado que permita destrinçar e melhor enquadrar estas similitudes. Na realidade as morfologias dos utensílios podem ser semelhantes mas a sua funcionalidade pode ser distinta, de acordo com a comunidade que os produziu, e no limite sequências de redução (manufactura) semelhantes podem ter objectivos técnicos distintos. Por outro lado, importa esclarecer, caracterizando e experimentando as matérias-primas, até que ponto a adopção de soluções semelhantes por parte de caçadores-recolectores e agricultores é consequência de um constrangimento e ou condicionante da gestão dos recursos disponíveis, ou se, por outro lado é uma opção adaptativa bem sucedida.
É neste quadro que está a ser desenvolvido, desde 2006, o Projecto Paisagens de Transição[4] que no âmbito do estudo das indústrias líticas pretende sistematizar os dados disponíveis relativos a indústrias líticas Paleolíticas e pós-Paleolíticas. Esta sistematização é feita em complementaridade com a caracterização das matérias-primas locais, em particular dos quartzitos, e com estudos tecnológicos e funcionais aprofundados, todos suportados pela aplicação de abordagens experimentais. Estas, pela sua natureza que adiante descrevemos, permitirão chegar a uma melhor compreensão do comportamento humano Pré-Histórico representado, ainda que parcialmente, nos artefactos líticos.
Estas linhas de pesquisa e as actividades que apresentamos neste trabalho têm sido desenvolvidas no Laboratório de Indústrias líticas do Instituto Terra e Memória – Centro de Estudos Superiores de Mação (protocolo entre o Instituto Politécnico de Tomar e Câmara Municipal de Mação) e no Centro de Interpretação de Arqueologia do Altor Ribatejo em Vila Nova da Barquinha, envolvendo investigadores do Projecto Paisagens de Transição e alunos do Mestrado em Arqueologia Pré-Histórica e Arte Rupestre (IPT/UTAD) e do Doutoramento em Quaternário, Materiais e Culturas (UTAD).
[1] When primeval man first used flint-stones for any purpose, he would have accidentally splintered them, and then would have used the sharp fragments.
Charles Darwin, in Descent of Man, 1871
[2] O Alto Ribatejo é a área em que se cruzam as três grandes unidades geo-morfológicas de Portugal (o Maciço Calcário Estremenho, o Maciço Hespérico e a Bacia Terciária do Tejo-Sado), sem fronteiras fixas, rigorosamente traçadas a partir de caracteres fisiográficos, mas estruturada pela hidrográfica formada pelos rios Nabão, Zêzere, Tejo, bordejados pelo Alviela, e pelo Ocreza.
[3] O projecto TEMPOAR (Territórios, Mobilidade e Povoamento do Alto Ribatejo) foi desenvolvido entre 1998 e 2006 sob a coordenação do Instituto Politécnico de Tomar. Entre outros objectivo o TEMPOAR visava estabelecer uma caracterização cronológica e tecno-tipológica das indústrias líticas, bem como uma melhor compreensão dos sítios arqueológicos em relação com os depósitos quaternários do Tejo e seus tributários.
[4] O projecto Paisagens de Transição – Povoamento, Tecnologia e Crono-Estratigrafia da transição para o agro-pastoralismo no Centro de Portugal (PTDC/HAH/71361/2006), aprovado e financiado pela FCT, tem como questão central compreender como eram socialmente estruturadas as primeiras paisagens agrícolas, por quem e quando.
Charles Darwin, na Origem do Homem, 1871[1]
1 - Introdução
As indústrias líticas, maioritariamente produzidas explorando seixos fluviais de quartzito, representam grande parte dos achados arqueológicos no Alto Ribatejo[2], os ecofactos registam-se quase exclusivamente nos depósitos em gruta. Com efeito, a natureza dos depósitos fluviais desta região não permite a conservação de materiais orgânicos, tornando bastante difícil a obtenção de datações absolutas e/ou relativas, que não estejam relacionadas com a geomorfologia ou com a caracterização das indústrias líticas. No entanto, os sítios de ar livre desta região, desde o Paleolítico Inferior ao Neolítico, evidenciam ao nível da economia das matérias-primas o uso intenso e continuado do quartzito, cujos padrões de distribuição espacial e características tecno-morfológicas se têm relevado de problemática interpretação crono-cultural.
Assim, a construção de um quadro crono-estratigráfico para esta região, tem por base a elaboração de cartografia geomorfológica de pormenor e a triagem das indústrias de cronologia holocénica face àquelas pleistocénicas (ROSINA:2004). Esta triagem tem sido feita através do estudo geo-arqueológico de colecções de superfície, estudo tecno – tipológico de indústrias provenientes de contextos escavados, elaboração de cartografia temática com Sistemas de Informação Geográfica e datações absolutas por OSL e Termoluminiscência (PRUDÊNCIO et al: no prelo).
No que diz respeito à caracterização crono – cultural das indústrias líticas dos sítios de ar livre desta região, as investigações já efectuadas, nomeadamente no âmbito dos Projectos TEMPOAR I e II[3], indicam que dificilmente podemos classificar os sítios recorrendo só a critérios tecno-tipológicos. Com efeito, vemos que, quer em conjuntos paleolíticos, quer em conjuntos pós-paleolíticos, é comum a constante presença de dois sistemas de produção de artefactos idênticos, ambos aplicados no talhe de seixos fluviais de quartzito. Um tem como objectivo a produção de suportes (lascas com e sem retoque) enquanto que o outro consiste no talhe dos seixos com vista à sua utilização como utensílios (chopper e chopping-tools). Mesmo quando no âmbito dos referidos esquemas são aplicadas diferentes sequências de redução, os artefactos podem apresentar grandes semelhanças morfológicas no tempo e no espaço (GRIMALDI et al:1999). Em suma, uma das impressões que podemos deter numa visão geral das indústrias líticas do médio Tejo português é a sua aparente, quase monótona, homogeneidade. Esta decorre de similitudes entre os artefactos associados a vestígios de ocupações humanas atribuídas a contextos cronológicos muito distintos, desde o Pleistoceno ao Holoceno. Sugerindo assim que comunidades de caçadores-recolectores e agricultores teriam, nesta região, uma relação com o ambiente semelhante, sendo esta sugerida pela continuidade e recorrência de estratégias tecnológicas e de economia de matérias-primas. Estas hipóteses, porém, exigem um estudo aprofundado que permita destrinçar e melhor enquadrar estas similitudes. Na realidade as morfologias dos utensílios podem ser semelhantes mas a sua funcionalidade pode ser distinta, de acordo com a comunidade que os produziu, e no limite sequências de redução (manufactura) semelhantes podem ter objectivos técnicos distintos. Por outro lado, importa esclarecer, caracterizando e experimentando as matérias-primas, até que ponto a adopção de soluções semelhantes por parte de caçadores-recolectores e agricultores é consequência de um constrangimento e ou condicionante da gestão dos recursos disponíveis, ou se, por outro lado é uma opção adaptativa bem sucedida.
É neste quadro que está a ser desenvolvido, desde 2006, o Projecto Paisagens de Transição[4] que no âmbito do estudo das indústrias líticas pretende sistematizar os dados disponíveis relativos a indústrias líticas Paleolíticas e pós-Paleolíticas. Esta sistematização é feita em complementaridade com a caracterização das matérias-primas locais, em particular dos quartzitos, e com estudos tecnológicos e funcionais aprofundados, todos suportados pela aplicação de abordagens experimentais. Estas, pela sua natureza que adiante descrevemos, permitirão chegar a uma melhor compreensão do comportamento humano Pré-Histórico representado, ainda que parcialmente, nos artefactos líticos.
Estas linhas de pesquisa e as actividades que apresentamos neste trabalho têm sido desenvolvidas no Laboratório de Indústrias líticas do Instituto Terra e Memória – Centro de Estudos Superiores de Mação (protocolo entre o Instituto Politécnico de Tomar e Câmara Municipal de Mação) e no Centro de Interpretação de Arqueologia do Altor Ribatejo em Vila Nova da Barquinha, envolvendo investigadores do Projecto Paisagens de Transição e alunos do Mestrado em Arqueologia Pré-Histórica e Arte Rupestre (IPT/UTAD) e do Doutoramento em Quaternário, Materiais e Culturas (UTAD).
[1] When primeval man first used flint-stones for any purpose, he would have accidentally splintered them, and then would have used the sharp fragments.
Charles Darwin, in Descent of Man, 1871
[2] O Alto Ribatejo é a área em que se cruzam as três grandes unidades geo-morfológicas de Portugal (o Maciço Calcário Estremenho, o Maciço Hespérico e a Bacia Terciária do Tejo-Sado), sem fronteiras fixas, rigorosamente traçadas a partir de caracteres fisiográficos, mas estruturada pela hidrográfica formada pelos rios Nabão, Zêzere, Tejo, bordejados pelo Alviela, e pelo Ocreza.
[3] O projecto TEMPOAR (Territórios, Mobilidade e Povoamento do Alto Ribatejo) foi desenvolvido entre 1998 e 2006 sob a coordenação do Instituto Politécnico de Tomar. Entre outros objectivo o TEMPOAR visava estabelecer uma caracterização cronológica e tecno-tipológica das indústrias líticas, bem como uma melhor compreensão dos sítios arqueológicos em relação com os depósitos quaternários do Tejo e seus tributários.
[4] O projecto Paisagens de Transição – Povoamento, Tecnologia e Crono-Estratigrafia da transição para o agro-pastoralismo no Centro de Portugal (PTDC/HAH/71361/2006), aprovado e financiado pela FCT, tem como questão central compreender como eram socialmente estruturadas as primeiras paisagens agrícolas, por quem e quando.
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