Na Gruta do Morgado superior (GMS) foram inteligíveis duas ocupações distintas (Tabela 1), numa estratigrafia estigmatizada por um forte remeximento que impossibilitou a separação dos restos arqueofaunísticos das diferentes camadas (A/B). Tendo estas atenuantes em mente, assim como a proveniência dos vestígios (sondagem 6m2) e o reduzido tamanho da colecção (NSP[1]=127) que foi analisada como se fosse um contexto uno, os dados devem ser interpretados à sombra destas especificidades. Somente apresentaremos os resultados referentes à acumulação de leporídeos.
Figura 1: Localização da Gruta do Morgado superior.
Tabela 1: Descrição sumária da estratigrafia e registo arqueográfico da GMS (Cruz, 1997; Oosterbeek, 1997; Oosterbeek & Cruz, 1998).
ID | Descrição | |
Camada | Registo Arqueográfico | |
A | Forte remeximento, c. 10 cm. de espessura, pulverulenta. | Muito parco, estrutura de combustão parcialmente conservada e materiais históricos (séc. XVIII/XIX). |
B | c. 30 cm. de espessura, parcialmente assente sobre manto estalagmítico. | Enterramentos ( Neolítico final/Calcolítico), cerâmica incisa e lisa globular. |
Resultados
Para os restos identificados como Oryctolagus cuniculus (NISP[2]=51, MNE[3]=42, MNI[4]=6) e Lepus sp. (NISP=1, MNE=1, MNI=1) (Tabela 2), o cálculo de idades baseou-se na esqueletocronologia e características da superfície óssea (ex. Jones, 2006). O MNI obtido para O. cuniculus foi de 6, designadamente 5 indivíduos imaturos e 1 neonato; para Lepus sp. a completa fusão epifisial do fémur engloba este espécime na classe adulto. Averiguou-se uma predominânica de fracturação em fresco, tendo-se excluído a influência de aves na acumulação pelo que, a priori, a mesma resultaria de acção antrópica ou natural, incluindo uma possível acção de carnívoros. À falta de indicadores tafonómicos directos (ex. marcas de corte, fervura, marcas de dentes), para os leporídeos é usual recorrer-se a indicadores indirectos (ex. representação anatómica, perfis de idade, cilindros diafisários) para discernir do carácter antrópico ou não das acumulações (Hockett, 1991; Pérez Ripoll, 1993; Hockett & Bicho, 2000; Jones, 2006).
Neste conjunto averigua-se um predomínio de elementos atribuídos a O. cuniculus e outros restos de animais com <20 kg (GP1). Identificaram-se 13 cilindros diafisários de GP1, dos quais 9 correspondem a O. cuniculus. A acção de fogo apenas se evidenciou em 4 elementos de O. cuniculus e 1 de GP1 (grau 2, Stiner et al., 1995). A influência de carnívoros encontra-se em 5 registos, sobretudo sob a forma de perfurações em plano de fractura de elementos de O. cuniculus, duas perfurações isoladas em dois fragmentos de ossos longos de GP1 e uma depressão em fragmento de osso longo de GP1. As características métricas destas mordeduras parecem sugerir a acção de um pequeno carnívoro (ex. Selvaggio & Wilder, 2001; Domínguez-Rodrigo & Piqueras, 2003; Delaney-Riviera et al., 2009).
Tabela 2: Valores NISP (MNE) por elemento anatómico e taxon/cat. taxonómica.
| Lepus sp. | O. cuniculus |
Dente |
| 2(2) |
Hemimandíbula |
| 2(2) |
Vértebra |
| 5(5) |
Costela |
| 6(3) |
Pélvis |
| 3(3) |
Fémur | 1(1) | 10(7) |
Tíbia |
| 8(6) |
Úmero |
| 3(2) |
Ulna |
| 1(1) |
Metatarso |
| 3(3) |
Metápodo |
| 3(3) |
Calcâneo |
| 5(5) |
Discussão
O número de cilindros diafisários e fragmentos com evidências de uso de fogo não são conclusivos e, na nossa opinião, não são suficientes face à ausência de Indicadores tafonómicos directos de uma influência antrópica na acumulação. Retirando da equação a acção de aves e tendo em conta os dados obtidos da análise das mordeduras cogitamos uma acção da parte de um carnívoro de porte pequeno. O predomínio de elementos dos membros posteriores (fémur e tibia), assim como a tipologia e localização das marcas de dentes, a reduzida percentagem de mandíbulas e padrões demográficos favorecem esta aproximação. Em detrimento, o reduzido número de vertebras por indivíduo, a presença de cilindros diafisários e fragmentos com evidências de acção de fogo podem apontar uma influência antrópica. Poderemos estar face a uma acumulação mista, contudo os dados são inconclusivos e somente com a continuação das escavações e o incremento do registo arqueofaunístico se poderá contrastar tal possibilidade.
Agradecimentos: a João Belo pelo cartografia.
Referências bibliográficas
Cruz, A.R., 1997. Vale do Nabão do Neolítico à Idade do Bronze. Arkeos 3. Tomar: Ceiphar.
Delaney-Rivera, C., Plummer, T.W., Hodgson, J.A., Forrest, F., Hertel, F., Oliver, J.S., 2009. Pits and Pitfalls: taxonomic variability and patterning in tooth mark dimensions. Journal of Archaeological Science 36, pp. 2597- 2608.
Domínguez-Rodrigo, M., Piqueras, A., 2003. The Use of Tooth Pits to Identify Carnivore Taxa in Tooth-Marked Archaeofaunas and their Relevance to Reconstruct Hominid Carcass Processing Behaviors. Journal of Archaeological Science 30, pp. 1385-1391.
Hockett, B. S., 1991. Toward Distinguishing Human and Raptor Patterning on Leporid Bones. American Antiquity 56 (4), pp. 667-679.
Hockett, B. S., Bicho, N., 2000. The Rabbits of Picareiro Cave: small mammal hunting during the Latter Upper Paleolithic in the portuguese Estremadura. Journal of Archaeological Science 27, pp. 715-723.
Jones, E.L., 2006. Prey Choice, Mass Collecting, and the Wild European Rabbit (Oryctolagus cuniculus). Journal of Anthropological Archaeology 25, pp. 275-289.
Oosterbeek, L., 1997. Echoes from the East: late Prehistory of the North Ribatejo. Arkeos 2. Tomar: Ceiphar.
Oosterbeek, L., Cruz, A.R., 1998. Gruta do Morgado Superior. Techne 4. Tomar: Arqueojovem/Instituto Politécnico de Tomar, pp. 201-209.
Pérez Ripoll, M., 1993. Las Marcas Tafonomicas en Huesos de Lagomorfos. Estudios sobre Cuaternario, pp. 227-231.
Selvaggio, M.M., Wilder, J., 2001. Identifying the Involvement of Multiple Carnivore Taxa with Archaeological Bone Assemblages. Journal of Archaeological Science 28, pp. 465-470.
Stiner, M.C., Kuhn, S.L., Weiner, S., Bar-Yosef, O., 1995. Differential Burning, Recrystallization, and Fragmentation of Archaeological Bone. Journal of Archaeological Science 22, pp. 223-237.
Nelson Almeida