quinta-feira, 5 de maio de 2011

A origem da acumulação de leporídeos da Gruta do Morgado superior (Alto Ribatejo, Portugal Central)

Contexto

Na Gruta do Morgado superior (GMS) foram inteligíveis duas ocupações distintas (Tabela 1), numa estratigrafia estigmatizada por um forte remeximento que impossibilitou a separação dos restos arqueofaunísticos das diferentes camadas (A/B). Tendo estas atenuantes em mente, assim como a proveniência dos vestígios (sondagem 6m2) e o reduzido tamanho da colecção (NSP[1]=127) que foi analisada como se fosse um contexto uno, os dados devem ser interpretados à sombra destas especificidades. Somente apresentaremos os resultados referentes à acumulação de leporídeos.








Figura 1: Localização da Gruta do Morgado superior.

Tabela 1: Descrição sumária da estratigrafia e registo arqueográfico da GMS (Cruz, 1997; Oosterbeek, 1997; Oosterbeek & Cruz, 1998).

ID

Descrição

Camada

Registo Arqueográfico

A

Forte remeximento, c. 10 cm. de espessura, pulverulenta.

Muito parco, estrutura de combustão parcialmente conservada e materiais históricos (séc. XVIII/XIX).

B

c. 30 cm. de espessura, parcialmente assente sobre manto estalagmítico.

Enterramentos ( Neolítico final/Calcolítico), cerâmica incisa e lisa globular.

Resultados

Para os restos identificados como Oryctolagus cuniculus (NISP[2]=51, MNE[3]=42, MNI[4]=6) e Lepus sp. (NISP=1, MNE=1, MNI=1) (Tabela 2), o cálculo de idades baseou-se na esqueletocronologia e características da superfície óssea (ex. Jones, 2006). O MNI obtido para O. cuniculus foi de 6, designadamente 5 indivíduos imaturos e 1 neonato; para Lepus sp. a completa fusão epifisial do fémur engloba este espécime na classe adulto. Averiguou-se uma predominânica de fracturação em fresco, tendo-se excluído a influência de aves na acumulação pelo que, a priori, a mesma resultaria de acção antrópica ou natural, incluindo uma possível acção de carnívoros. À falta de indicadores tafonómicos directos (ex. marcas de corte, fervura, marcas de dentes), para os leporídeos é usual recorrer-se a indicadores indirectos (ex. representação anatómica, perfis de idade, cilindros diafisários) para discernir do carácter antrópico ou não das acumulações (Hockett, 1991; Pérez Ripoll, 1993; Hockett & Bicho, 2000; Jones, 2006).

Neste conjunto averigua-se um predomínio de elementos atribuídos a O. cuniculus e outros restos de animais com <20 kg (GP1). Identificaram-se 13 cilindros diafisários de GP1, dos quais 9 correspondem a O. cuniculus. A acção de fogo apenas se evidenciou em 4 elementos de O. cuniculus e 1 de GP1 (grau 2, Stiner et al., 1995). A influência de carnívoros encontra-se em 5 registos, sobretudo sob a forma de perfurações em plano de fractura de elementos de O. cuniculus, duas perfurações isoladas em dois fragmentos de ossos longos de GP1 e uma depressão em fragmento de osso longo de GP1. As características métricas destas mordeduras parecem sugerir a acção de um pequeno carnívoro (ex. Selvaggio & Wilder, 2001; Domínguez-Rodrigo & Piqueras, 2003; Delaney-Riviera et al., 2009).

Tabela 2: Valores NISP (MNE) por elemento anatómico e taxon/cat. taxonómica.


Lepus sp.

O. cuniculus

Dente


2(2)

Hemimandíbula


2(2)

Vértebra


5(5)

Costela


6(3)

Pélvis


3(3)

Fémur

1(1)

10(7)

Tíbia


8(6)

Úmero


3(2)

Ulna


1(1)

Metatarso


3(3)

Metápodo


3(3)

Calcâneo


5(5)

Discussão

O número de cilindros diafisários e fragmentos com evidências de uso de fogo não são conclusivos e, na nossa opinião, não são suficientes face à ausência de Indicadores tafonómicos directos de uma influência antrópica na acumulação. Retirando da equação a acção de aves e tendo em conta os dados obtidos da análise das mordeduras cogitamos uma acção da parte de um carnívoro de porte pequeno. O predomínio de elementos dos membros posteriores (fémur e tibia), assim como a tipologia e localização das marcas de dentes, a reduzida percentagem de mandíbulas e padrões demográficos favorecem esta aproximação. Em detrimento, o reduzido número de vertebras por indivíduo, a presença de cilindros diafisários e fragmentos com evidências de acção de fogo podem apontar uma influência antrópica. Poderemos estar face a uma acumulação mista, contudo os dados são inconclusivos e somente com a continuação das escavações e o incremento do registo arqueofaunístico se poderá contrastar tal possibilidade.

Agradecimentos: a João Belo pelo cartografia.

Referências bibliográficas

Cruz, A.R., 1997. Vale do Nabão do Neolítico à Idade do Bronze. Arkeos 3. Tomar: Ceiphar.

Delaney-Rivera, C., Plummer, T.W., Hodgson, J.A., Forrest, F., Hertel, F., Oliver, J.S., 2009. Pits and Pitfalls: taxonomic variability and patterning in tooth mark dimensions. Journal of Archaeological Science 36, pp. 2597- 2608.

Domínguez-Rodrigo, M., Piqueras, A., 2003. The Use of Tooth Pits to Identify Carnivore Taxa in Tooth-Marked Archaeofaunas and their Relevance to Reconstruct Hominid Carcass Processing Behaviors. Journal of Archaeological Science 30, pp. 1385-1391.

Hockett, B. S., 1991. Toward Distinguishing Human and Raptor Patterning on Leporid Bones. American Antiquity 56 (4), pp. 667-679.

Hockett, B. S., Bicho, N., 2000. The Rabbits of Picareiro Cave: small mammal hunting during the Latter Upper Paleolithic in the portuguese Estremadura. Journal of Archaeological Science 27, pp. 715-723.

Jones, E.L., 2006. Prey Choice, Mass Collecting, and the Wild European Rabbit (Oryctolagus cuniculus). Journal of Anthropological Archaeology 25, pp. 275-289.

Oosterbeek, L., 1997. Echoes from the East: late Prehistory of the North Ribatejo. Arkeos 2. Tomar: Ceiphar.

Oosterbeek, L., Cruz, A.R., 1998. Gruta do Morgado Superior. Techne 4. Tomar: Arqueojovem/Instituto Politécnico de Tomar, pp. 201-209.

Pérez Ripoll, M., 1993. Las Marcas Tafonomicas en Huesos de Lagomorfos. Estudios sobre Cuaternario, pp. 227-231.

Selvaggio, M.M., Wilder, J., 2001. Identifying the Involvement of Multiple Carnivore Taxa with Archaeological Bone Assemblages. Journal of Archaeological Science 28, pp. 465-470.

Stiner, M.C., Kuhn, S.L., Weiner, S., Bar-Yosef, O., 1995. Differential Burning, Recrystallization, and Fragmentation of Archaeological Bone. Journal of Archaeological Science 22, pp. 223-237.

Nelson Almeida


[1] Number of specimens.

[2] Number of identified specimens.

[3] Minimum number of elements.

[4] Minimum number of individuals.