terça-feira, 17 de maio de 2011

Modificações de superfícies ósseas, uma “experiência” de consumo com Canis familiaris. I - planos de fractura.

Problemática arqueológica

Vários investigadores dedicam-se a questões relacionadas com modificações induzidas durante o consumo por diferentes animais. O objectivo principal é a aquisição de dados actualistas que permitam traçar paralelos com o registo arqueológico aquando da análise tafonómica. São vários os factores que influem (directa ou indirectamente) no tipo de fracturação resultante: características físico-químicas dos ossos (ex. estado, morfologia, animal) e aspectos biológicos (ex. fisiologia e etologia do carnívoro, pressão trófica, tipo de acesso). O resultado da pressão das cúspides dentárias nas superfícies ósseas é a fracturação e presença de marcas de dentes (apresentadas num post posterior). A primeira compreende geralmente morfologias em espiral ou helicoidais (Lyman, 1994).

Os canídeos domésticos (Canis familiaris) ocasionam principalmente planos de fractura típicos de ossos secos/semi-secos (ângulos rectos e mistos). Os canídeos fracturam e mastigam grande parte dos ossos longos, engolindo e digerindo muitos fragmentos de diâmetro <2,5 cm. O consumo poderá ocorrer através da redução das epífises dos ossos longos com acesso e consumo da medula óssea resultando em cilindros diafisários que, para além das típicas marcas dentes, poderão apresentar um adelgaçamentos associado a arredondamento/polimentos das superfícies ósseas, ou ainda sobrevir a formação de fracturas longitudinais acaneladas (ex. Payne e Munson, 1985; Haynes, 1980, 1983, 1985; Binford, 1981).

Materiais e Métodos

Durante sensivelmente 2 dias vários elementos ósseos de um indivíduo juvenil de Ovis aries estiveram acessíveis a um Canis familiaris adulto (Figura 1). Os restos eram provenientes de um churrasco, tendo estado directa e indirectamente submetidos a fogo durante cerca de 2 a 3 horas, e apresentavam somente alguns tecidos moles remanescentes não consumidos. Após a recolha dos restos, estes foram submetidos a tratamento através do seu fervimento durante cerca de uma hora para remoção dos vestígios presentes e, ulteriormente, foram deixados ao sol para secarem e serem analisados. Neste pequeno post somente faremos referência aos planos de fractura encontrados em duas tíbias (esquerda e direita), um fémur (direito), um rádio (esquerdo) e um úmero (direito). Os elementos encontravam-se parcialmente articulados antes do acesso para consumo mas devido ao carácter inesperado da situação não foi possível encontrar todos os elementos e os materiais resultantes da fracturação.

Figura 1: Elementos modificados durante o consumo.

A metodologia de análise segue Villa e Mahieu (1991) que no seguimento de Bonnichsen (1979) e Bunn (1983) contemplam a delineação em relação ao eixo longitudinal do osso (transversal, longitudinal, curva), o ângulo formado pelas fracturas (oblíquo, recto, misto) e a superfície de fractura (suave, irregular). Somente se analisaram fracturas localizadas na área cortical pois as existentes na zona cortical delgada ou esponjosa não são tidas como diagnósticas. A secção das diáfises é agrupada em A (S superior/igual 2/3), B (1/3 inferior/igual 2/3) ou C (S inferior 1/3). A longitude das diáfises é agrupadas em A (L inferior 1/4), B (1/4 inferior/igual ½), C (1/2 inferior/igual ¾) ou D (L inferior/igual ¾).

Resultados

Os diferentes elementos demonstram a completa destruição das epífises proximais e distais (Tabela 1). No que concerne às secções somente se averiguaram secções do tipo A; relativamente às longitudes encontram-se as classes D (3) e C (2). Tendo em conta que não estamos perante a uma experimentação mas sim uma experiência imprevista não nos foi possível encontrar as porções em falta, que terão sido completamente destruídas e/ou consumidas, o mesmo se poderá dizer para algumas lascas ósseas derivadas da fracturação. Ainda assim de relevar a existência de uma lasca cortical não desprendida na face posterior do rádioE. Outros indicadores de consumo, nomeadamente as marcas de dentes, foram averiguadas e serão apresentados num futuro próximo, contudo a inexistência de epífises estará interligada a esvaziado (furrowing em grau extremo).

Tabela 1: Análise das secções e longitudes dos diferentes elementos com indicação da presença ou ausência das distintas porções ósseas.

Análise

Elemento

FémurD

RádioE

TíbiaD

TíbiaE

ÚmeroD

Secção

A

A

A

A

A

Longitude

C

D

D

D

C

Porção 1

Inexistente

Inexistente

Inexistente

Inexistente

Inexistente

Porção 2

Quase inexistente

Parcialmente presente

Parcialmente presente

Quase inexistente

Inexistente

Porção 3

Presente

Presente

Presente

Presente

Presente

Porção 4

Inexistente

Parcialmente existente

Quase inexistente

Quase inexistente

Presente

Porção 5

Inexistente

Inexistente

Inexistente

Inexistente

Inexistente


A maioria dos planos de fractura comparecem em metáfises (cortical delgado) e como consequência não são analisáveis devido às características desta área óssea. É clara a preponderância de fracturas de delineação curva, contudo predominam os ângulos mistos e superfícies irregulares (Tabela 2).


Tabela 2: Análise dos planos de fractura segundo a delineação, ângulo e superfície.

Planos de fractura

Elementos

FémurD

RádioE

TíbiaD

TíbiaE

ÚmeroD

1

C-O-S

C-O-S

C-M-I

C-O-S

C-O-S

2

C-M-I

L-R-S

C-M-I

C-O-I

C-M-I

3

C-M-I

C-M-I

C-M-I

4

C-M-S

L-M-I

C-MI

5

C-O-S

T-M-I

6

L-R-S


Agradecimentos: gostaria de agradecer à Smartie, doravante também conhecida como "Bónita", pelo inesperado contributo nesta experiência.


Referências bibliográficas

- Binford, L.R., 1981. Bones: Ancient Men and Modern Myths. Academic Press, New York.

- Bonnichsen, R., 1979. Pleistocene bone technology in the Beringian Refugium. NMM, Otawa.

- Bunn, H.T., 1983. Comparative analysis of modern bone assemblages from a San hunter-gatherer camp in the Kalahari Desert, Botswana, and from spotted hyena den near Nairobi, Kenya. In:Vlutton-Brock, J. and Grigson, C. (Eds.), Animals and Archaeology, Hunters and their Prey, BAR International Series 163, Vol. I., pp. 143-148.

- Haynes, G., 1980. Evidence of carnivore gnawing on Pleistocene and recent mammalian bones. Paleobiology 6, 341-351.

- Haynes, G., 1983. A guide for differentiating mammalian carnivore taxa responsible for gnaw damage to herbivore limb bones. Paleobiology 9, 164-172.

- Haynes, G., 1985. On watering holes, mineral licks, death and predation. In: Mead, J. and Metzer, D. (Eds.), Environments and Extinctions: Man in Late Glacial North America. Center for the Study of Early Man, Orono, ME, pp. 53-71.

- Lyman, R.L., 1994. Vertebrate Taphonomy. University Press, Cambridge.

- Payne, S., Munson, P.J., 1985. Ruby and how many squirrels? The destruction of bones by dogs. In Fieller, N.R.J., Gilbertson, D.D. and Ralph, N.G.A. (Eds.), Palaeobiological Investigations: Research Design, Methods, and Data Analysis, BAR International Series S266. Archaeopress, Oxford, pp. 31-39.

- Villa, P., Mahieu, E., 1991. Breakage patterns of human long bones. Journal of Human Evolution 21: 27-48.


Nelson Almeida