sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Take 2, já cá esteve...com descrição e sem comentários «indiscretos»

Indústrias Líticas e experimentação

Antes de reflectirmos um pouco acerca da Arqueologia experimental enquanto abordagem no estudo dos artefactos líticos pré-históricos, importa esclarecer aquilo que ela não é, já que é frequente a confusão entre experimentação, experiência e actividades didácticas de manufactura e utilização de utensílios em pedra.
Por exemplo, o talhe experimental de um Biface é um exercício de reprodução onde são aplicados conceitos e técnicas que derivam da experimentação, mas é uma experiência individual. É então uma actividade de contacto entre o talhador, as matérias-primas e tecnologias empregues que, sendo fundamental para o processo de aprendizagem do talhe, pela sua singularidade não é Arqueologia Experimental. Por outro lado, talhar o mesmo Biface perante um grupo de não especialistas (por exemplo visitantes de um museu ou de um parque arqueológico), não só é uma reconstrução altamente educativa, como deve ser a comunicação acessível dos resultados de uma investigação pautada pela experimentação, mas não é em circunstância alguma Arqueologia Experimental. As experiências singulares e didácticas devem decorrer de um plano de investigação de problemáticas arqueológicas, cujo estudo passa por actividades de experimentação, mas são já efectuadas sem o método, a exaustividade de registo e confronto que estas implicam. Sobretudo não ocorrem como fase de teste, verificação e compreensão de uma hipótese ou modelo construído com base no estudo de materiais e contextos arqueológicos.
No decurso da investigação sobre um sítio arqueológicos, o entendimento dos seus processos de formação, das suas estruturas ou dos conjuntos artefactuais nele exumados pode levar à formulação de hipóteses de explicação e interpretação. Hipóteses essas que são susceptíveis de serem aferidas através da experimentação, fundamentando ou não a sua adequação e coerência explicativa. A fundamentação surge no confronto entre o decorrer das actividades experimentais, os seus resultados e os dados arqueológicos.
A arqueologia experimental é assim uma actividade constituída por um conjunto de fases analíticas que permitem reconstruir um artefacto ou fenómeno no seu devir, fundamentada na integração dos dados resultantes nos estudos de partida e de confronto, sendo que os seus dados devem ser submetidos ao mesmo processo analítico dos arqueológicos.
Em termos genéricos, uma experimentação científica pode ser definida como a execução concreta de uma sequência de acções parametrizadas, observáveis directa e indirectamente, e que podem ser replicadas monitorizando as variáveis de forma a testar e verificar uma dada hipótese ou para estabelecer relações de causa/efeito entre fenómenos. Mesmo para quem tem uma formação no campo das ciências sociais, como é o caso da maior parte dos arqueólogos, em termos metodológicos o essencial da experiência científica não é difícil de compreender, é sobretudo a sua execução que é delicada já que, na maior parte dos casos, exige uma objectividade, rigor e detalhe exaustivos. No entanto, sendo essa a base conceptual de um processo experimental a sua aplicação em Arqueologia, pela natureza dos dados e pelo processo de pesquisa de que o investigador experimentador é parte integrante e não isenta, é distinta.
Em arqueologia não podemos deixar de ser conscientes da impossibilidade de reproduzir artefactos e fenómenos exactamente como foram. Os dados arqueológicos sob os quais construímos hipótese e modelos foram sujeitos a processos de formação e alteração que não conseguimos identificar e especificar na sua totalidade. Inevitavelmente a experimentação efectuada com base nestes dados é feita em circunstâncias artificiais criadas indutivamente no presente e que são limitadas pelo difícil controlo de todas as variáveis que interferem no processo experimental. (LONGO:2001).
Outro factor não menos importante é a consciência de que as nossas motivações enquanto investigadores recorrendo à experimentação jamais serão equivalentes às motivações dos indivíduos pré-históricos no decorrer dos processos de fabricação e utilização dos artefactos. Mais, as actividades técnicas são também orientadas por factores psicomotores do indivíduo que as executa e esta constatação torna ainda mais evidente a impossibilidade de replicação exacta quando estudamos espécies que não a nossa, como o são o homo heidelbergensis ou o homo neanderthaliensis (BRACCO :1991).
No que diz respeito às indústrias líticas a experimentação é actualmente uma das abordagens que mais informação proporciona para a compreensão da variabilidade do comportamento humano através do estudo dos modos de produção e utilização dos seus artefactos em pedra que integram o nosso registo arqueológico. Permite-nos, entre outras possibilidades, melhor compreender as opções e constrangimentos na gestão das matérias-primas, a escolha e aplicação de sequências de redução e a relação destas com as actividades de subsistência desenvolvidas nos sítios arqueológicos. Dá-nos também a possibilidade de questionar os critérios convencionais da classificação tipológica (PERETTO:1994, p.151), isto é classificação sustentada na análise morfológica dos artefactos, que pode mascarar os processos técnicos e funcionais, que de forma mais aproximada definem a indústria lítica em análise e por inerência o comportamento humano a ela subjacente.
Todavia, a experimentação não surge neste processo de estudo de indústrias líticas somente como um exercício pautado por um rigoroso método objectivo e sistema documental estritamente descritivo que se aplica repetidamente (e em alguns casos acriticamente). Também é isso, mas não só, o que de forma alguma lhe retira uma suposta validade ou veracidade científica (GRIMALDI:2003).
O talhe experimental ou a utilização de suportes líticos são sobretudo uma ferramenta heurística suplementar, já que utilizada como um utensílio cognitivo e não como um modelo invariável, permite aceder a um método de leitura do material arqueológico diferente. A repetição não se faz só por uma exigência de metodológica e acumulação de dados de forma asséptica, mas também porque é provocada pelo confronto com os materiais arqueológicos que suscitam outras actividades experimentais (BOEDA: 1994, pág. 16).

Sem comentários: