sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Esquartejamento experimental de dois Sus scrofa

Esquartejamento experimental de dois Sus scrofa

Os resultados apresentados enquadram-se nos diversos projectos interdisciplinares desenvolvidos pelo Laboratório Quaternário e Indústrias Líticas (Instituto Terra e Memória, Mação, Portugal) e pelo Grupo “Quaternário e Pré-História” do Centro de Geociências da Universidade de Coimbra.

A aquisição de dados actualistas através de esquartejamento experimental de carcaças animais apresenta como principais objectivos a) apurar os problemas das distintas fases de esquartejamento, b) zonas mais propícias a contactos e c) suas consequências, possibilitando extrapolar padrões de acesso e consumo.

Protocolo Experimental

Os espécimes em questão são dois javalis juvenis com um peso a oscilar entre os 40-50 kg (2ª/3ª geração em cativeiro). Servimo-nos de utensílios em quartzito e preensão manual. Todas as acções/contactos foram registados: descrição da actividade, unidade anatómica, movimento (tipo, direcção), localização (face, porção) e pressão exercida (Ficha N.º 1). As experimentações efectuaram-se com os esqueletos apoiados no solo e os intervenientes apresentavam experiência prévia nestas actividades. Após o esquartejamento, os restos foram fervidos de modo a se retirar os recursos não aproveitados.

Todas as unidades anatómicas foram analisadas recorrendo a uma lupa de mão (10x) e, em alguns casos, uma lupa binocular OPTHEC x120Hze e um microscópio metalográfico Olympus SZ40 (400x) apetrechado com uma câmara Infinity X (software DpxViewPro). As marcas de corte foram registadas consoante a sua tipologia (incisão, raspado, talhe, serrado), localização (porção, face), orientação e disposição, tendo-se efectuado medições com um paquímetro digital Lux. Consideramos como grupo/conjunto - efeito de um momento correlativo a uma mesma acção - todas as marcas agrupadas com distâncias <5>













O processo de esquartejamento (Figura N.º 1) iniciou-se com a remoção da pele realizou-se através de uma incisão longitudinal no ventre, estendida até à área da articulação do atlas com o áxis, a partir desta produziram-se outras quatro longitudinais mediais, uma para cada membro. Após o corte em toda a secção dos articulares (contactos com os carpais/tarsais) removeu-se a pele ocorrendo contactos com o crânio e mandíbulas. Procedeu-se à separação das extremidades recorrendo à indústria lítica e, sobretudo, a força mecânica e movimentos de torção (contactos com os carpais/tarsais); desconexão do rabo (contactos com algumas vértebras caudais); do crânio (contactos com a base do crânio, atlas, áxis e 3ª vértebra cervical). A esvisceração foi realizada com os utensílios (contacto com a face ventral de algumas costelas) e as mãos. O desmembramento dos membros anteriores realizou-se pela escápula junto com o antebraço, sem contactos; os membros posteriores através da articulação do acetabulum com a cabeça do fémur tendo ocorrido contactos com o acetabulum e o fémur (porção 1 e 2).

No indivíduo 1 percutiu-se no esterno de modo a abrir a caixa torácica tendo-se fracturado o mesmo e as partes distais das costelas articuladas com as estérnebras. No indivíduo 2 procedeu-se à remoção da língua sem que se registasse quaisquer contacto com a mandíbula; tal ocorrência carece de contrastações porquanto o crânio estava sem pele e havia-se descarnado a face lateral das mandíbulas. Em ambos os indivíduos foram descarnadas algumas unidades anatómicas.
















Figura N.º 1 – Diferentes etapas do esquartejamento experimental.

Os dados obtidos possibilitaram discriminar as distintas actividades de processamento das carcaças. Acções de remoção de pele comparecem sobretudo através de incisões, mas também golpes, oblíquos e transversais nas mandíbulas, crânios e alguns articulares. As marcas relacionáveis com a esvisceração são muito raras e apenas foram averiguáveis sob a forma de incisões na face ventral de algumas costelas. Saliente-se que as marcas de corte podem comparecer em mais do que uma costela mas corresponder ao mesmo movimento.

As actividades de desmembramento foram realizadas previamente à descarnação (e desconexão posterior) e compareceram sob a forma de incisões na pélvis e porção 1 dos fémures; ocasionalmente averiguaram-se serrados, nomeadamente no acetabulum do espécime 2. O espécime 1 não apresentava quaisquer marcas na porção 1 do fémur e apenas um dos acetabulum apresenta marcas desta acção. Tal aspecto poderá dever-se à pressão baixa dos contactos ou a que estes se remetam sobretudo para a cartilagem. Por outro lado, levantou-se a possibilidade de, no caso de se tratar de indivíduos jovens de dimensões pequenas, o desmembramento dos membros posteriores puder sobrevir com o corte de massa muscular seguido por um movimento de torção, assim provocando raros contactos/marcas de corte.

O descarne e desconexão posterior pode sobrevir sobre a quase totalidade do esqueleto e comparece principalmente na forma de incisões oblíquas de dimensões variáveis. De referir a comparência de raspados (indivíduo 1) devidos ao descarne e relacionados com o aproveitamento de recursos marginais, em detrimento da preparação da superfície óssea para criação de um área idónea à percussão. Ambos os indivíduos eram jovens pelo que alguns ossos apresentavam bastante esfoliação, dificultando a visualização de possíveis marcas de corte.



Figura N.º 2 – Incisões paralelas transversais na face medial, porção 4 da tíbia esquerda (67x).







Figura N.º 3 – Golpe isolado oblíquo na face caudal, porção 3 da escápula esquerda (67x).






Figura N.º 4 – Conjunto de marcas de corte do tipo raspado oblíquas na face ventral, porção 3 da tíbia esquerda (67x).



Nelson Almeida

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